Talvez seja uma questão de biorritmo, não sei; o
fato é que não funciono bem na parte da tarde. Não consigo ser totalmente feliz
entre 13:00 e 17:00 horas, mais ou menos, o que pode explicar em parte a minha
alegria nos muitos anos em que trabalhei como músico “da noite”. Nos países
mais atrasados e corruptos do mundo (como Somália, Burundi, Timor Leste,
Brasil...) é costume estar calor nesse período, portanto as pessoas honestas
preferem fazer sua sesta enquanto os gatunos e políticos aproveitam para
arquitetar suas maracutaias.
-- Então por que você resolveu ir morar em
Ubatuba?! – perguntam-me os amigos quando falo dessa minha idiossincrasia.
– Devia ter ido morar na Suíça, meu!
Ocorre que tem algumas coisas que eu detesto ainda
mais do que trabalhar à tarde, sendo a principal delas o frio, e lá é gelo
durante nove meses do ano. Quando a temperatura atinge incríveis 15ºC a turma
fica pelada e vai correndo pra piscina, coisa boa pra deixar pingüim feliz. E,
já que estou falando em coisas que odeio, acabo de voltar à frase anterior
porque o Bill Gates resolveu corrigir automaticamente o meu pingüim,
tirando-lhe o trema. Só que pinguim é “pingo pequeno” de mineiro, uai! Senão
fica como me aconteceu outro dia, ao escrever a letra da música “O Pato” para
um aluninho sabido:
O pato vinha cantando alegremente – quem quem
quando o marreco sorridente pediu
para entrar também no samba...
-- Fessor, cê esqueceu o ponto de interrogação. –
corrigiu-me o garoto.
Eu sempre soube que patos não falam, apenas
perguntam, de modo que suspirei fundo e até considerei explicar-lhe por que
razão fizeram mais uma reforma ortográfica na língua portuguesa, qual seja facilitar
a vida léxica de países que já produziram tantos literatos importantes, como
Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé-Príncipe e Timor Leste.
Claro que poderiam fazer tais gentes ler um pouco de Camões, Camilo Castelo
Branco, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, José
Saramago, esses escritorezinhos antiquados, porém isso levaria muito tempo e
daria a eles um trabalhão, além de deixar nossos acadêmicos sem mais o que
fazer senão tomar chá com bolinhos-de-chuva.
-- Unificar o idioma, eis o busílis –
disseram magníficos escritores como José Sarney, Marco Maciel, Paulo Coelho e
Ivo Pitanguy – chega ou querem mais?
Desisti de explicar, até porque teria também que
contar a ele que a Sorbonne deu a Lula da Silva um título de Doutor Honoris
Causa, e aí ficaria muito mais fácil explicar-lhe antes a Teoria da
Relatividade, né não? Ora pois...
Odeio autocorreção, autoformatação, autoajuda,
automóvel, autoqualquercoisa; podem deixar por minha conta, combinado? Se não
gostarem, que vão tomar no toba (como se diz nas Minas Gerais e já sabia
Guimarães Rosa). O pingüim é meu, então metam-se com os seus e deixem os
pingüins dos outros em paz. Espero que ninguém no espaço sideral ou cibernético
interfira no meu direito ao livre arbítrio: quero do jeitinho que escrevi,
absolutamente sic e não sick.
Por exemplo: nas minhas seis décadas de existência
a palavra cu já foi cú, depois virou cu , depois virou cú de novo, voltou a ser
cu e, mais uma vez, é cu sem o acento, espero que agora definitivamente, seja
em Lisboa ou em Díli, capital do Timor Leste, onde o idioma mais falado é o tétum.
Por que não deixam a gente falando que-nem o Machadão, e os timorenses
falando lá o idioma que eles inventaram, hem? Alguém tem alguma coisa contra o tétum?
Será que vão corrigir também a Cesária Évora?
Para constar (e não me encherem mais o saco), eu
conheço perfeitamente a nova ortografia; só não uso aquilo que considero
besteira, e estamos conversados. O que eu ia contar – e já estaria contando se
o Microsoft Office não me aparecesse para atrapalhar – é uma coisa mais
importante do que a reforma ortográfica de 2009 ou saber que pato e parente só
servem pra sujar a casa da gente: vou dar-lhes o privilégio de conhecer a minha
agenda existencial diária. Caso vocês estejam aí dando uma risadinha irônica,
quero saber quantas agendas existenciais diárias vocês conhecem, ahn? Então.
05:30 ___ Acordar, verificar se tenho ao menos uma
coisinha doendo, vestir-me, deixar a cara minimamente suportável aos mortais
com alguma sensibilidade estética.
05:40 ___ Tomar um golinho do café de ontem e fumar
meu primeiro tabaco, que é pros olhos abrirem até a metade.
05:50 ___ Tomar meu primeiro cafezinho quente e
fumar meu segundo cigarrinho, o que fará meu cérebro tentar responder às
primeiras questões existenciais do dia: onde estou?; quem sou eu?; de onde
venho?; para onde vou?; Deus existe?; sou feliz?; o que é a Verdade?
06:00 ___ Comer duas fatias torradas de
pão-de-fôrma (que me perdoem os acadêmicos, mas Dona Edwiges, minha professora
de Desenho no ginásio, ensinou que forma é outra coisa, e eu acreditei,
pois ela entendia dessas coisas, até épuras era capaz de rebater sem
pestanejar, a danadinha).
06:03 ___ Fumar meu terceiro cigarrinho (baixo
teor, é claro, que dá um câncer light, conforme dizem os médicos
enquanto sopram suas fumaças na minha cara). Tudo isso, até aqui, enquanto leio
os emails que chegaram sem anexos, pois ainda não tenho, a esta hora da
madrugada, energia espiritual suficiente para aturar tanta bobagem inútil;
esses ficam pra depois, quando eu já estiver com ao menos metade dos neurônios
ligados.
06:11 ___ Acender meu tabaco nº.4, o que me deixará
quase acordado por inteiro, podendo aí começar a ler o jornal no computador.
06:12 ___ Vou lendo: o ministro que roubou, os juízes
do Supremo que absolveram o ex-governador ladrão, a presidenta com A que não
sabia de nada, o general que não gostava de gays, o outro ministro
jurando que não roubou, o grande centroavante que marcou seu primeiro gol em
vinte partidas... De repente acordo de vez, quando vejo uma foto de Dom Lula e
Dona Tótem abraçados. Paro de ler, pois já começo a ficar mal do fígado – o
Grande Apedeuta, logo cedo!, ninguém merece... De qualquer modo, já sei de cór
todas as notícias, inclusive as da semana que vem.
06:25 ___ Dar partida e esquentar o motor do meu
veículo, enquanto vou queimando o nº.5 e sentindo aquele prazer sensual que
Carlos Gardel descreveu tão bem no tango “Fumando Espero”. Podem até chamar de
viatura, se preferirem, mas carro não. A menos que queiram me ofender, porque o
meu é um Monza Bala 2.0 ano 1989, e quem já teve um, sabe o que isso significa,
especialmente em dias frios.
Escuta aqui, você que está lendo estas bobagens e
possivelmente sorrindo da minha atual condição financeiro-automotiva: no
papelzinho do IPVA está escrito que eu tenho um “carro de coleção”, tá sabendo?
Daí que não pago mais imposto e aquele verde-camuflagem (que só os anos
conseguem criar) me faz reconhecido em qualquer lugar por onde passo; por acaso
aquele seu prateadinho básico inconspícuo consegue isso!?
Falando nisso, se alguém souber onde tem um
carburador GM de época pra vender, por favor me avise, porque já procurei em
todos os desmanches do litoral Norte e não há meio de encontrar um.
06:40 ___ Agora sim: já estou pensando a todo
vapor, minha pressão arterial atingiu os necessários 135 por 90, minha
filhotinha me deu um baita beijo bem melado, o mundo é bom e a felicidade até
existe. Estou legalzão, quase eufórico, e minha hérnia vertebral me avisa que
continuo devidamente encarnado.
06:50 ___ Vamo que vamo. Primeiro deixar Dona
Emília na escola onde leciona Arte, pois ela estará dentro da sala de aula
cinco minutos antes de bater o sinal, haja furacão ou tsunami, mesmo sabendo
que os primeiros desinfelizes só começarão a entrar dali a dez minutos, que
alunos podem ser ignorantes mas geralmente são espertos pra caramba.
07:00 ___ Deixo a Laura na EMEI, não sem antes
transmitir os recados dela às professoras (as princesas não pedem, é claro;
mandam pedir): passar de novo o filme do Patati & Patatá, dois palhaços
muito imbecis e sem graça, cuja melhor piada é caírem sentados no chão, mas ela
adora; e repetir ao menos um pedaço do Peixinho Nemo ou aquela cena em que a
Branca de Neve dança (tesudinha como sempre, ou melhor, como ficou depois que
foi morar com os 7 anões, pois antes era tão sem graça quanto a Gata
Borralheira antes de entrar na carruagem-abóbora).
07:10 ___ De volta ao lar doce lar, livre para
tomar muito café e fumar muitos cigarros até completar a leitura dos emails,
assistir todos os anexos, passar por todas as doutrinações de autoajuda, rever
aqueles que assisti faz uns cinco anos e agora estão circulando de novo...
Dependendo de quantas mensagens afetuosas chegaram nesse dia, posso ir à luta,
pois ainda falta responder à pergunta principal – quem sou eu? – porém isso é
secundário, já que com Deus e Jesus finalmente ao meu lado estou devidamente
capacitado a dizer quem eu não sou. Ótimo, já é um bom começo.
07:30 ___ Tendo assim sobrevivido a tanto amor e
carinho, e a tão sinceras tentativas de salvar minha alma e minha sanidade
mental, posso finalmente entregar-me ao prazer de ler os emails da minha amiga
Marquesa de Mococa, que é também Baronesa de Nhumirim, mas isso agora também
ficou secundário, porque marquesa é
mais.
07:50 ___ Pronto, li todos. Leitura preliminar, por
certo, que Sua Alteza é ilegível, mais misteriosa que John Le Carré antes da
página 300, mas eu sabia de antemão que não ia entender nada. Vou reler, pra
ver se confirmo que foi mesmo o mordomo quem matou o gato do Edgar, ainda que
eu nunca tenha ouvido falar no Edgar e muito menos soubesse que ele tinha um
gato. Releio mas termino em dúvida: se ele, o Edgar, era o único com razoáveis
motivos para cometer o crime, por que aquela menininha aparece de inopino na
história, en passant, como quem não quer nada, como quem não tem nada a
ver com nada, como um banal E.T. venusiano, perguntando aos céus:
-- "Quem foi que falou aí – Agora é a minha
vez de ficar por cima!?”
... sendo que eu ainda nem sabia que tinha alguém
por ali, e muito menos que um estava por baixo de outrem? Hmm... isso
não está me cheirando nadica de nada bem. Isso foi no email de ontem,
contando que o gato entrou em óbito induzido (ou seja, foi assassinado). No de
hoje ela me chama de estúpido, porém conta aquela parte da história em que
aparece a tal menininha extra-terrestre, que é a chave da compreensão do
mistério – e conta escrevendo com aquela sua nova técnica literária que ninguém
até hoje pensou em usar como artifício de suspense, na qual os tipos gráficos
são em cinemascope, feitos para a tela do antigo Cine República, com suas 2000
poltronas (e mesmo assim a gente tinha que sentar do meio pra trás, senão
perdia metade do filme). Em tipos gráficos tamanho 96 só aparece uma linha de
cada vez com três ou quatro palavras, então fico tentado a recomendar que ela consulte
seu oftalmologista ou compre um monitor de plasma com 42 polegadas, mas desisto
da ideia porque ela provavelmente vai me xingar de coisa pior que
“estúpido”, aí eu fico tristinho, mando-a tomar no cu, ficamos de
mal, essas coisas... E vejam só: não foi a menininha venusiana nem foi o
mordomo quem matou o tal gato do Edgar – aliás, não foi ninguém; o gato se
suicidou porque fôra (fora é antônimo de dentro, mas como eles
não entendem de antônimos em Guiné-Bissau, isso é supérfluo), repito: o gato
dele se matou porque fôra rejeitado pela cadelinha do vizinho. Filha da mãe! (a
cadelinha, não a Marquesa); e poodle, inda por cima. Mas que gato mais besta,
sô!, tanta cadela boa solta por aí, doida pra dar até prum gato deprê... Bem
feito, gato idiota, sifo!
[Por oportuno: meu caro Bill Gates, pode enfiar o
seu sifão no rabo.]
O resto da minha agenda vou tentar resumir, senão
vira novela, e agora já resolvi que vou pôr na seção de crônicas.
E ainda são oito da manhã, vai ser um dia cheio... Assim, vou pôr por aí;
depois alguém traduz para o tétum e vocês já ficam avisados, param por aqui
mesmo, a menos que estejam morrendo de vontade de saber como o amor é lindo.
08:30 ___ Estou
na agência bancária, no centro da cidade (digamos assim, que eu às vezes
aprecio um eufemismo, dado que Ubatuba está mais pra rally off road), tendo conseguido chegar até aqui sem atropelar
nenhum bicicleteiro filho-da-puta trafegando pela contramão. Meu tio Hercílio
era um canalha, é sabido, mas tinha razão numa coisa: caiçara é espírito de
ex-escravo que reencarnou aqui pra se vingar de todos nós que em outras
existências fomos brancos e feitores. Cumprindo pacientemente o meu karma, deposito
um chequinho de aluno particular de violão e me sinto melhor: o cheque especial
sai do roxo-velório pra ficar no vermelho-alerta-nuclear.
08:45 ___
Sentadinho e fumando na cabeleireira – eu ela deixa, é minha cúmplice na
contravenção tabagística. Então a manicure, que eu nunca vi mais magra nem mais
feia, me vê enrolando um cigarrinho de palha (fumo de corda importado do Rio
Grande do Sul, que eu sou pobre porém sou chique) e me pergunta (fazendo o
gestual correspondente) se eu sei que o certo é lamber no sentido vertical, ao
que respondo:
-- Ora,
então não sei?! Pois é a minha especialidade, madame, comecei a lamber antes
dos 2 anos de idade. E olha que nunca chupei um picolé na vida, só gosto de
sorvete de casquinha...
09:00 ___ O
cabelo ficou meio mal cortado, que eu sou o único cliente masculino daquele
salão e ela está com pressa, mas com tão pouco cabelo não é preciso muita arte
nem frescura, e eu continuo bonito como sempre. Até porque deixei de cortar com
barbeiros quando finalmente tomei consciência de que eles ficam meia hora
batendo tesoura na orelha da gente só pra cortar meia dúzia de cabelinhos, e só
sabem falar de futebol e mulher gostooosa, coisas mais chatas. Só os tarados e
broxas ficam falando de mulher gostosa; mulher é pra degustar, comendo ou
conversando ou mesmo só olhando essa maravilha da Criação, não é pra ficar falando dela, uai!... Ah, quer saber? –
vai dar, meu!
09:10 ___ De
volta ao lar, já estou com saudade da Laura, e ainda faltam quase três horas
pra ir buscá-la na escola. Como não fumo durante as aulas, aproveito que ainda
faltam vinte minutos e concentro a dose de nicotina: fumo dois enquanto jogo um
pouquinho de Atari.
09:30 ___ Minha
primeira aula do dia. O carinha de 12 anos me pede para ensinar-lhe "Cry
Me a River".
-- Como é?!
“Cry Me a River” ?! De Arthur Hamilton?! Você conhece Julie London?!
-- Quem?
-- Deixa pra
lá.
Era uma nova
“Cry Me a River”, de um tal Justin Timberlake, tão débil que nem foi capaz de
inventar um título novo. Vou à Internet pra conhecer e aproveito para traduzir
a letra, pois o carinha ainda está na fase do this is a table, what is this?
Você era o meu
sol,
você era a
minha terra,
mas não
conhecia todos os modos
de eu te amar.
Então você
arriscou
e fez outros
planos,
mas aposto que
você não pensou
que eles um dia
viriam abaixo,
pensou?
Não, ela não
pensou, tenho certeza; se pensasse nisso, ou se ao menos pensasse, não ia
namorar um sujeitinho desses. Sei dizer que ganhei 30 real por três acordes e
45 minutos de caridosa paciência. Fiquei feliz ao saber que Mr. Timberlake tem
uma rendosíssima griffe de moda jovem – quando não conseguir mais vender discos
nem para a madrinha dele, já estará milionário e não precisará entrar na fila
do auxílio desemprego. Melhor ainda: quanto mais cedo ficar bilionário, mais
cedo o mundo fica livre de uma tal anta sonora, embora isso não resolva o
problema, pois para cada um que desiste da carreira "artística"
surgem outros mil. Segundo a associação americana dos produtores de discos, 200
"artistas" por semana lançam seu primeiro CD, ou seja, 10.400 novos
por ano, e acumulando, acumulando, uma verdadeira praga. Não adiantaria cortar
a língua deles, sempre acaba sobrevivendo aí um Oasis da vida, ou um Green
Day... são invencíveis, pois sua capacidade para a feiura e a epigonia é coisa
que só pode ser explicada pela tal condição humana que nem os filósofos
honestos até hoje resolveram bem o que é.
10:15 ___ O
segundo aluno faltou, prova insofismável de que Deus existe e é bom. Tomara que
não seja por causa do vírus H1N1, atualmente epidêmico; basta que seja apenas
um dedo mindinho quebrado. Então vou aproveitar para responder alguns emails,
senão meus amigos podem gostar menos de mim, e são tão poucos...
Considerando
que eu dei minhas primeiras aulinhas de violão em 1962, estou completando 50
anos como professor de música. Meio século! Nunca, em nenhum momento, estive
sem alunos: 1 ou 2, nos períodos em que ensaiava e tocava com minhas bandas,
até 120, quando minha mulher e eu tivemos uma escola de música. A menos que eu
seja um caso patológico de masoquismo, é no mínimo presumível que eu goste de
ensinar música, não é? Aceitando como verdade que eu gosto de fazer isso,
aproveito para dizer que há alunos e alunos – o maior ou menor talento nunca
fez diferença pra mim; mas o gosto pelo ato de tocar, sim, é isso que conta.
Nunca espero que sejam gênios, porém sempre quero perceber que eles tiram
prazer de fazer música por si mesmos. Mas há aqueles que não se dedicam
minimamente durante a semana e chegam à aula com sua enorme cara de pau, dando ridículas desculpas e
achando que estão me pagando o bastante pra ficar ali estudando com eles, como
“dama de companhia”. São esses que, quando faltam à aula, me fazem dar graças a
Deus.
11:00 ___
Segunda aula do dia: "Retalhos de Cetim". Êba!, Benito de Paula, já
melhorou mir veiz (até porque podia ser alguma “música” do Alexandre Pires ou
Bruno & Marrone, já pensou?). Saí no lucro, ganhei mais 30 real e, feliz ou
infelizmente, só terei mais aulas às 7 da noite, isso é que vida boa. Meu avô
me chamaria de chupim, aquele que vive à custa de mulher professora; na minha
família Zimmermann era praticamente uma indecência imperdoável casar com uma professora,
absoluta falta de decoro.
11:55 - Saio
correndo pra buscar a Laura e (se não cair a chuva que está ameaçando) ficar 15
minutos brincando com ela nos balanços e escorregadores do parquinho, enquanto
levamos leros estratosféricos: hoje ela é a Bel e eu sou o Garibaldo; amanhã
ela vai ser a Emília e eu vou ser o Conselheiro – talvez ela queira ir me
preparando para o futuro próximo, deve me achar ótimo no papel de burro
falante.
12:20 ___ Pegar
a mamãe na escola e ir correndo pra casa, que ela precisa almoçar seu chuchu
com beterraba e estar de volta à escola antes das 13:00. Hoje à noite, morrendo
de fome e após 10 horas aturando os protogênios que ela insiste em ensinar,
provavelmente vai comer dois sanduíches de filé acebolado na frança com maionese
Hellman's, engordando 300 dos 100 gramas que emagreceu no almoço mas jurando
que em dezembro vai estar usando biquíni branco na praia; enquanto a espero
almoçar fico com a Laura na Internet, sendo ela quem usa o rato e navega, eu só
censuro quando ela quer entrar na Xuxa: pornografia infantil é crime, não pode,
e eu tenho minhas responsabilidades de pai, não é mesmo? Duro é que ela
consegue assistir dez mil vezes certos desenhos, incluindo o Mickey, que eu
odeio (meu melhor amigo é home sexual,
porém detesto bichinhas, como esse ratinho besta). O diabo é que ela
cada vez gosta mais do Mickey e da Minnie, outra chatinha (sou muito mais a
Cuca ou a Bruxa Malvada do Oeste, cá entre nós). Eu bocejo mas aguento firme –
de que coisas é capaz o amor, reflito, e medito ainda: bem, a Laura já
tem uma profissão garantida na vida – dubladora de desenhos, decora todas as
falas de todas as personagens de todos os desenhos de todos os canais. Ou
então roteirista: ontem inventou uma história do Punzinho Fedido que queria
namorar uma Punzinha Cheirosa... mas vou poupá-los do final dessa história
levemente escatológica.
12:55 ___ Táxiiii! Papaaaaaiiiê, a Momãe tá prooontaaaa!!!
Então lá vamos
nós levar de novo a professora para o seu cruel destino; a babá sobe com
ela, eu vou almoçar, fumar na minha sala, ler um pouco, depois tirar uma
pestana – ô, vidão, sô! Nada como ser um bom chupim...
14:30 __ Vou
mexer com minhas músicas e audiovisuais. Preciso acabar hoje sem falta o Hino
da Escola Estadual Sueli Figueira dos Santos, que Pro Emília me pediu para
compor, mesmo eu achando altamente duvidoso que a Diretora e o Supervisor e a
Delegada de Ensino admitam que isso seja mesmo um hino (no You Tube vocês vão
poder escutar, é a última faixa do vídeo “Jazz & Cia – parte 4”).
15:30 ___
Consegui. Dou uma entrada no estúdio Sound Up, do maestro Mauro Juliani, pra
ver se vai rolar algum trampinho extra (pois, se não pintam umas partituras,
como é que eu vou trocar os pneus do Monza Bala 89?). Nicas, então aproveito
pra encher um pouco o saco desse meu afilhado músico/produtor, faço mil-e-umas
perguntas irrespondíveis sobre engenharia de áudio, ele suspira mas tem uma
paciência de Jó, afinal ninguém mandou ele me convidar para padrinho de
casamento, eu bem que aconselhei insistentemente que escolhesse lá um tio rico,
que nunca o aborrecesse e ao menos desse uns presentes interessantes.
17:00 ___ A
empregada vai embora e eu vou passear com a Laura, visitar os cachorros e gatos
do bairro, ir à sorveteria Kibon (que é o único de verdade), então brincar na
pracinha perto de casa, ou pegar ondas de barriga nalguma praia balneável,
comer batatas chips num quiosque ou pastel de palmito no China. A opção é ir à
biblioteca municipal, onde eu tiro um livro e ela tira outro, sendo que eu escolho
rápido, ela demora meia hora até decidir por alguma coisa tipo “As Cobras da
Mata Atlântica”, ou (de novo!) ir ao aquário ou ao Tamar. Enquanto isso eu
tento entender como é que alguém pode gostar tanto de olhar tartarugas – todas
iguais, lentas, não falam com a gente, umas bestóides, mas ela adora, talvez
porque na saída sempre come uma tartaruguinha de chocolate com baunilha, o que
deve compensar a chateação dos quelônios. Vou escutar mais uma vez as lições
dela sobre as diferenças entre jaboti, cágado e tartarugas de couro, cabeçudas,
olivas, carnívoras e sei lá que outras espécies, coisas da mais alta
importância, pois ela conhece todas aos 5 anos, portanto em breve estarei
fudido, vou ter que escutar que "papai não sabe nada de nada, é um
burrinho, mas eu te amo".
18:00 ___
Buscar a Professora e levá-la à outra escola, para alguma reunião de
professores onde serão lidas trocentas atas da Secretaria de Educação e vão
planejar trocentas maneiras de não ensinar nada que valha a pena ser ensinado.
Sempre que tenho oportunidade digo às professoras e diretoras que elas são o
braço armado do sistema, preparando as novas gerações cada vez mais
imbecilizadas, e aproveito pra contar que meu hino é "Another Brick On
The Wall", do Pink Floyd:
“We don't need no education,
we don't need no mind control,
hey, teacher, leave our kids
alone".
Obviamente elas
me odeiam só um pouquinho, mas não podem fazer grande coisa, porque bem ou mal
entrei duas vezes na USP, fui aluno de Florestan Fernandes e Paulo Freire,
assistente de Koellreutter no Instituto de Estudos Avançados da USP, li (e
entendi!) Platão, Kant, Hegel, Engels, Marx, Gramsci, Nietzsche, além de
Shakespeare (no original), Flaubert (no original), Garcia Lorca (no
original)... cês sabem que modéstia nunca foi um dos meus defeitos. E outros
quetais, quer dizer: comigo o buraco é muito mais embaixo, não adianta
espernear, e nem vem de garfo que hoje é dia de sopa.
Na minha escola
(Liceu Pasteur, sem falsa modéstia) não havia reunião nenhuma, nem dia da
Árvore, das Mães, dos Cambau, nada disso. Era assim: estuda pra caramba, de
segunda a sábado, das 7 ao meio dia, depois se forma (ou sai e vai estudar no
Colégio Ipiranga ou em alguma espelunca para vagabundos), depois escolhe a
faculdade preferida, faz vestibular e entra e boa. Ou larga a Medicina ou
Jornalismo no segundo ano – como eu e meu sobrinho Mestre Internacional de
Xadrez fizemos – e vai ser feliz na vida fazendo outra coisa, simples assim. Ou
seja, faz como Paulo Francis:
-- Prefiro ser vaiado na rua do que aplaudido
na Academia Brasileira de Letras.
Aí uma
professora lá, fazendo a melhor cara de ironia que sua inteligência permite (eu
apostaria em algo entre 82 e 90), me diz:
-- Então o
Senhor é mesmo um gênio, não é? – ao que respondo:
-- Não
Senhora! Meu Q.I. nunca passou de 140, graças a Deus! Ocorre que eu não sou um
preguiçoso mental, e não finjo que estudo, e nunca estive preocupado em fazer
carreira nem virar diretor de nada, e detesto ser ignorante, e sou sinceramente
honesto com a profissão que escolhi, só isso. E a Senhora, é?
20:10 ___ Minha
última aluna acaba de telefonar, muito envergonhada: não vai poder vir à aula
de hoje. Eu não disse que Deus é bom?! Aleluia, Gretchen! Ôpa!, isso não;
aleluia, Juliette Binoche!!! Mais um tabaquinho em sua homenagem.
20:30 ___
Supervisar a comidinha da Laura; ou, melhor dizendo, apreciar o esporco que ela
faz comendo sozinha e dizendo: "eu já sei fazer tudo sozinha". Sabe
mesmo, inclusive levar tombos homéricos e viver com os joelhos ralados, fora as
mordidas que ela leva dos coleguinhas – pois morrem todos de ciúme dela, tanto
os machinhos como as femeazinhas, enquanto eu vivo ameaçando abrir um processo
por bullying no Conselho Tutelar, he he, a diretora e as professoras
agora me tratam melhor do que se eu fosse primeiro ministro.
22:15 ___ Laura
dorme. Finalmente livre para namorar, escutar música, assistir algum filme ou,
o que é mais comum, ajudar Dona Emília nos tais planejamentos e relatórios e
outras idiotices ditas pedagógicas.
24:00 ___
Devidamente podre, rango um queijo quente com tomate e deito para
assistir um pedacinho de telejornal. Detalhe: nunca tenho insônia.
Descobri há
muito tempo que a felicidade não se encontra em nenhum lugar, só no coração da
gente. Meu avô Fritz sabia disso, pois me ensinou: mais vale uma mula velha no
quintal da gente do que dois burros novos pastando no latifúndio alheio. E mais
não digo nem me perguntaram.
Dvcor,
non dvco. Assinado:
Fredericus Rex.
ADENDO – como eu antecipava, escutaram o hino lá
na escola e disfarçaram educadamente uma arregalada de olhos que poderia ser
traduzida assim:
-- Mas
isso é um hino?!